Escrever dá trabalho. Não saber o que escrever dá mais ainda. Fiquei meses mastigando dúvidas - qual formato? qual assunto? qual frequência? qual nome? - até que, como um chiclete que perde o sabor e fica duro na boca, tais perguntas se grudaram na minha cabeça, esperando por uma cuspida que nunca vinha. Mastigar as dúvidas se tornou um obstáculo cômodo - aquela dorzinha de dente que atiçamos com o tal chiclete duro. Um castigo de Sísifo autoimposto, que adia o momento derradeiro: escrever.
Escrever dá medo. Não saber o que escrever é paralisante. Saber o que escrever, mas duvidar que seja “a coisa certa” a se fazer é cruel.
E mastigar chiclete velho cansa.
Chegou a hora da cuspida.
Há meses quero usar este espaço para publicar minhas histórias. Eu escrevo contos; uns mini, outros nem tanto. Estou juntando alguns para, em breve, publicar um livro de forma independente.
Para isso, preciso de duas coisas essenciais:
A primeira é praticar minha escrita; por isso, a Geleia Cósmica será, a partir de agora, um laboratório de histórias.
A segunda é ter a sorte de contar com pessoas que as leiam. Porque eu posso escrever mil e uma histórias, mas se elas não forem contadas, serão como pássaros numa gaiola: confinados a cantar para as paredes as melodias que sangram de suas almas.
Aqui estou - arrombando as gaiolas e libertando as histórias.
Convido você a fazer parte dessa nova etapa da Geleia Cósmica.
E ela começa agora.
💫 Fabulatório
O conto a seguir foi resultado de um trabalho para a faculdade. A proposta era escrever um texto sobre uma foto tirada por nós - e nele só poderia haver uma verdade, o resto deveria ser inventado.
Chuta nos comentários qual a parte verdadeira da história.
“Folha de Rosto”
Cara pessoa que lê, a história que vou lhe contar é verdadeira. Não há mentira coberta pelo véu das vírgulas - talvez um temperinho, um sal a gosto, nada mais - então não venha me acusar de fake news. Juro juradinho.
Eis que fazia uma noitinha muito da fresca.
Era sexta-feira, e tínhamos acabado de sair da última aula da faculdade, eu mais João. Como estudantes exemplares, depois de uma semana cansativa, tomamos a decisão mais sensata, claro, e tocamos para o bar.
Não muito longe do portão da universidade, me deparo com a capa de um livro, de título “O Homem”, jazendo ali na contramão, atrapalhando o tráfego. Na faixa de pedestres, de graça, sem motivo, evocando perguntas irrespondíveis por cabeça sóbria - a que me embalou na aventura a seguir, camarada, “aonde foi parar o resto do livro?”, me arrependo até hoje de ter amargado com a resposta.
João, em passo trôpego, já se estendia na outra calçada. Corri para alcançá-lo e contei do livro, ou melhor, da capa. Mas que doideira, hein, ele disse, e seguimos pro boteco. Desce a cerveja e dois cigarros, e taca-lhe prosa. Era um tal de música gritando, gente velha e gente nova, cheiro de marola e malandragem. Desce mais uma e mais dois, a noite sambava. Parou do nosso lado uma mulher, posso me sentar aqui?, e puxou a cadeira. Tô esperando uma amiga, posso fumar? Pode. Posso beber? Pode também. Contou que a amiga vinha de Uber, que estava chegando. Iam para um samba na Prainha. E vocês, tão fazendo o quê? João falou qualquer coisa. Não me contive.
- Coisa engraçada, tinha a capa de um livro ali, no meio da rua.
- Que livro?
Mostrei para ela a foto que tirei com o celular.
“Puta que pariu.”
Ela roeu as unhas e olhou para os lados. Pegou mais um cigarro, sem pedir, e acabou com minha cerveja. Olhei para João, que sorria com o bigode. Que foi, moça?, ele tentou.
“Vocês precisam vir comigo”, e saiu, levando meu celular! Abestalhado, custei para ir atrás da peste. Mergulhei nos corpos bêbados, suados de tesão reprimido, aquele cheiro de fantasia carioca good vibes. Avistei seus cachos coloridos mais adiante, fiz sinal para João mais atrás, e subimos a avenida no grito da noite.
Dobramos uma e outra esquina, e vi a malandra entrar num prédio escuro, com placas de obra e janelas quebradas. Parei, pensei, que eu faço?, entrei. Ouvi João pisar na poça d’água no pé da escada que eu já subia. Os passos dela, muito acima. Tropecei pela escadaria suja até o telhado. Arfava, doía. Baratas saltavam de cantos escuros, mal iluminados pelo laranja dos postes da cidade. Ela estava ali, na beirinha, olhando para cima em redenção.
Moça, chamei, sai daí! Não saiu. O vento ondulava sua roupa neon. O samba comia em alguma esquina. Ela olhou para trás e eu soube. Corri, me estiquei, agarrei - nada. Vapor, fumaça. Na queda, olhei para cima e vi João; mas não emergi. Impuro, caí, caí, na armadilha da coelha.
Quem me lê agora deve estar duvidando, mas largue de desconfianças que ainda não me acabei. Depois de afundar no escuro por horas, avistei a luz. Uma luz vermelha, densa. Ouvi passos, roncos e gritos. A luz verde veio em seguida, e abri os olhos, assustado com o barulho. A vista doía, mas eu não sentia meu corpo. Estava deitado, caído num mundo imenso. A luz outra vez se avermelhou. Era um sinal.
Parou uma mulher, que atravessava na faixa. Aquela malandra, a mesmíssima! Olhou para mim - para o quê? - franziu a testa e sacou o celular. Tirou uma foto e seguiu a amiga, me olhando confusa uma última vez. Não pude gritar, me mexer, fazer nada.
Até que chega um senhor, já em rugas, que me ergue do chão e suspira “achei!” Me conduz até sua banquinha de madeira na calçada, e saca um livro - sem capa - do restante dos alfarrábios. Taca durex na lombada, paninho com álcool pra disfarçar a fuligem, “tá novo.”
Estou à venda, cinco reais (levando três paga dez) na barraca de livros em frente à universidade. Só tenha a decência de não me rasgar.
💫 ParalElos
A série The Marvelous Mrs. Maisel me fisgou, e enquanto chego nos últimos episódios, sinto a saudade já se aproximando. Uma das séries mais bem produzidas - e mais divertidas - que já assisti. As cenas de abertura fantásticas, os diálogos geniais, e aqueles episódios que racham nossa cabeça - como o primeiro da quarta temporada, que me deu o pontapé para publicar este texto.
A série está disponível na Amazon.
A trilha sonora de Mrs. Maisel também arrasa, e coloquei mais duas músicas na minha coleção dos coraçõezinhos.
A primeira é Being Good, da Jule Styne, que toca no final do episódio de abertura da 4ª temporada. Uma delícia.
A segunda é Art For Art’s Sake, da banda 10cc. O segundo episódio da 4ª temporada também é muito bom.
É isto, personas. Nos esbarramos por aí.
Ótima semana ;)