Olho para cima e o luminoso roxo me cega. Minha vista se acostuma, e nas luzes neon consigo ler “Blük Merh”. Em Treoli, a terceira lua de Stryx, este é o restaurante mais procurado pelos turistas com grana, influenciados pelos nômades espaciais e suas resenhas espalhadas por toda spacenet.
Sua fachada de pedra vulcânica decorada com gemas estelares pode ser vista a três quilômetros de distância, pois chega a uma altura de quase duzentos metros. O porquê de um restaurante ser construído com essas dimensões é rapidamente compreendido ao observar as figuras que saem pela porta dos fundos: com pescoços alongados tal qual das girafas megalufomânicas (mas muito maiores) os galavadianos são frequentadores assíduos do lugar. O engraçado é que nenhum deles sabe usar a spacenet, e nem fazem ideia do que seja um influenciador galáctico.
Apesar do cardápio ser muito atraente - postas de guandalôssu ao molho behemê, bolinhos de mitafildes com pimenta jupiteriana, e claro, as famosas ovas de samghü diabólico - passo direto pela porta de entrada e sigo por mais três ruas, virando à esquerda em uma alameda larga. Imensas árvores, de folhas amarelo brilhante, enfileiram-se no passeio público que atrai milhões de alienígenas de todas as galáxias; uma confusão de dialetos tornaram o lugar conhecido como a Babel de Treoli.
Todos os dias, barracas são erguidas para formar o maior mercado popular deste sistema solar, e não há lugar melhor para se encontrar comida boa - e sem a fanfarronice dispendiosa do Blük Merh. Aqui, os bolinhos de mitafildes conseguem satisfazer qualquer viajante espacial; e a pimenta é muito mais picante. Esta noite, porém, escolho me deliciar com um sanduíche de guerrin grelhado com queijo de Saturno, no tradicional pão miólis tostado com azeite de rufimbo. Sério, o cheiro que sai da chapa enquanto o chef tosta o pão é um absurdo.
Enquanto espero, peço uma cerveja triplo malte com teor alcoólico de 37%. Dois goles e já estou vendo estrelas. O chef, um maltadiano simpático com uma barba roxa cintilante, me entrega o sanduíche gritando “Voos A Lüuhn!”, que quer dizer “agora pague a conta!” no idioma maltu. Aproximo meu chip do receptor de pagamentos e sento para comer.
Um sanduíche e duas cervejas mais tarde, me levanto - o álcool tornando esta tarefa um tanto hercúlea - e sigo meu caminho pela alameda cheia. Em todas as barracas, os turistas se acotovelam para observar as mais variadas mercadorias: temperos exóticos trazidos de galáxias distantes; lenços para todos os pescoços em linho superestelar; até bugigangas inúteis para dar de lembrança pro seu cunhado chato. O que chamou minha atenção foram uns instrumentos musicais feitos de lava congelada, que emitiam um som tão grotesco que fizeram os pelos da minha nuca se eriçarem. Me segurei para não comprar um.
Mais para o final da alameda Babel, um rio de águas turvas cruza o caminho e, pagando apenas 3 zólis, você pode embarcar numa balsa guiada por treolianos que vão contando as histórias dos lugares por onde o rio passa. A pontezinha de pedra que cruza o rio é um cartão postal, e a escolha preferida dos viajantes que atrapalham a passagem para fazer seus posts na spacenet. Enquanto passo pela multidão apertada, vejo uma criança derrubando seu sorvetinho nas águas fedorentas do rio abaixo, desatando a chorar no colo da mãe, que vira os sete olhos e suspira fundo, claramente desejando não ter saído de casa naquela noite.
Na margem oposta do rio, um grande templo de esmeralda marca o fim do percurso. Uma estátua enorme em cobre maciço (cobre aqui vale mais que diamante) ergue-se no centro do pátio que fica em frente ao templo. A imagem representa a deusa Stryx, com seu bico alongado e cara achatada de coruja, encarando aquela multidão de turistas, julgando cada um de seu altíssimo poleiro de pedra. As milhares de luzes neon da Babel de Treoli dão à superfície de cobre da deusa um aspecto sobrenatural, como se portasse dentro de si todas as luzes do universo.
Fico ali parado, admirando a deusa solitária, viajando em pensamentos. Será que ela olha para mim assim como eu olho para ela? O que meus olhos revelam para a deusa que sabe de tudo?
Realmente é uma visão fantástica, e sob o feitiço hipnótico das luzes da alameda tomo o caminho de volta para meu quarto de hotel, para sonhar com cores e aromas de uma lua que, diferente de mim, nunca dorme.