Para começar a escrever este texto fui procurar, nos meus papéis, uma anotação que fiz outro dia. Uma frase, que desde então está boiando na lagoa da minha mente. Não achei a anotação. Não lembro exatamente da frase. Como dizem que uma caminhada é o melhor remédio para o esquecimento, vou passear no campo das palavras. Quem sabe esbarre com a frase entre as flores do jardim.
O canto dos pássaros entrou no meu radar há poucos anos. Antes disso, o chilrear se mesclava com as buzinas e gritos e alto-falantes. Foi durante um retiro (mais para uma fuga da sociedade) em Araruama, onde meu avô morava, que comecei a ouvir seu chamado. Na casinha simples, de paredes brancas já aparentando a idade, com rachaduras no chão do quintal por onde a vida brota sem pudor, me isolei do mundo real.
O plano era viver da terra. Utópico, pois sim, eu sou. Tracei um plano infalível - pesquisei os grãos da estação, as hortaliças, frutas etc. Medi o pequeno terreno; não daria para muito, mas o suficiente para mim. Se Thoreau conseguiu viver por dois anos em Walden a base de feijão1, eu também conseguiria. O plano era perfeito. Durou duas semanas. O motivo? Quebrei um dedo do pé. Mas essa história eu conto outro dia.
Durante meu isolamento, minha grande companhia eram os pássaros. Bem-te-vis, cucos, carcarás, lavadeiras, rolinhas… De manhã e à tardinha, sua cantoria invadia meus ouvidos. Foi lá que eu vi um bem-te-vi espantar um gavião no grito. Juro. Passei a prestar atenção em seus cantos, em como se comunicavam, na diferença entre a forma de um e outro piar. Foi nessa que me apaixonei. Hoje, se estou andando na rua e vejo uma coisinha se movendo no cantinho da visão, ou ouço uma cantoria entre as folhas de uma árvore, eu paro e observo. Fico igual um gato deitado num peitoril de janela namorando os passarinhos da rua - com a diferença que não quero comê-los.
Sim, eu me tornei a pessoa que observa pássaros. Uma atividade sem qualquer utilidade prática na minha vida, pequeno prazer que me transporta para um jardim de ideias tranquilas, um prazer fútil… Isso! Lembrei! Era essa a frase: os pequenos prazeres fúteis da vida.
Barthes, em seu texto “O Efeito de Real”2, aponta para alguns excessos nos romances realistas, que ele chama de “notações escandalosas”. São detalhes aparentemente insignificantes (em sentido literal: sem significado) que surgem no texto, mas que poderiam (supostamente) ser deixados de lado sem afetar a narrativa. Ele questiona: se tudo na narrativa tem significado, qual seria a significação dessa insignificância?
Qual a utilidade do inútil?
O canto dos pássaros, os raios de sol que escapam entre as folhagens, aquela conversa sobre o nada e a vida, um passeio no jardim, as gotas de chuva que deslizam como diamantes na janela. Prestar atenção nesses detalhes não te enriquece. Nada disso vale como uma conquista a se estampar nas redes sociais. São notações escandalosas, pormenores supérfluos, insignificantes. Então, porque significam tanto para nós?
Em seu texto, Barthes sugere que esses detalhes têm seu significado neles mesmos. É como se eles dissessem: somos a realidade, estamos aqui para criar o “efeito de real”. E assim, mergulhamos na história como se estivéssemos vivendo nela, respirando aquela mesma bruma de Tostes tal qual Emma Bovary em um de seus devaneios. São pequenas joias, cuja finalidade é o belo, a fruição da leitura, o prazer nelas mesmas. Pontes para uma realidade alternativa.
Qual a utilidade do inútil? E por que tudo tem que ter utilidade? Por que essa obsessão pelo pragmático, pelo funcional? Sou grande defensor da inutilidade, dos momentos de ócio, da contemplação. Tentando não cair na minha própria armadilha, arrisco dizer: é muito útil ser inútil. Mas não precisa ser.
Quando escuto o canto dos pássaros, meu objetivo (se é que tenho um) não é tornar-me especialista em cantos de aves, um ornitólogo - apesar da minha tendência de mergulhar fundo em qualquer coisinha que me interessa. Admito, fui até mesmo procurar cursos de biologia com foco em aves. Também procurei cursos de agroecologia quando planejei minha fuga da sociedade. Busca por validação externa?
No fundo, sentimos culpa por “gastar” nosso tempo com qualquer coisa que não pague nossos boletos, ou não nos torne “seres humanos melhores”. Até a literatura precisa ter um caráter positivista (alô Antonio Candido), como se para adentrar as páginas de um livro, o mínimo que podemos esperar é sair, ao final da leitura, como uma pessoa iluminada.
Ler não basta? Exercitar os músculos da imaginação, se deixar levar para outros mundos, outras realidades? Digo ler, mas insira aqui qualquer verbo intransitivo que te dê prazer. Viver não requer complemento.
A vida é cheia desses pormenores inúteis, desses pequenos prazeres fúteis. Basta prestar atenção - estão por toda nossa volta. E não servem para nada. Apenas estão lá, existindo. E, talvez justamente por isso, cumpram a maior de todas as funções: nos mostrar que o que é real está nos pequenos detalhes.
A vida se basta por ela mesma.
O texto “O Efeito de Real” se encontra no livro “O Rumor da Língua”
Li seu texto escutando os passarinhos ao fundo e notando que não entendo nada sobre isso e já ficando curiosa para prestar atenção e saber diferenciar as coisas. Adorei o convite ao inútil, Leo! Um ótimo pretexto para o feriado prolongado :)
As coisas inúteis são extremamente úteis. Basta inserir as devidas adequações. Viajei no seu texto, Leo! Valeu!